Could It Be Any Harder

Dezoito de outubro. O dia mais cruel, o dia mais difícil. Como era difícil colocar-se de pé, como era difícil arrumar-se, como era difícil simplesmente seguir em frente. Quinze anos completos e ainda assim não desvanecia a dor. Quinze anos completos e a saudade apenas fazia aumentar. Resistiu, fez-se de forte, respirou fundo e colocou os pés fora da cama. Involuntárias, as lágrimas brotavam. Persistiu. Escovou os dentes, tomou banho, penteou o cabelo. Uma trança espinha de peixe, diferente das habituais tranças francesas, mas ainda assim uma longa e pesada trança dourada como sempre. Nenhuma maquiagem, mas discretas pérolas adornavam as orelhas. As lágrimas pareciam permanecer, embora não transbordassem o limite das pálpebras inferiores; os olhos continuavam avermelhados. Meias pretas opacas; um discreto vestido midi estampado com círculos pretos tangentes e pequenos espaços brancos entre os círculos, sem mangas e com uma faixa preta à cintura. Cogitara os scarpins pretos de camurça, mas preferiu as botas pretas também de camurça e de altos e finos saltos. Sozinha, fechou um colar de prata com pingente de cruz. Vestiu um trench-coat cinza chumbo com grandes botões pretos frontais e apanhou a bolsa. Um gole de água, óculos escuros, um ramo de orquídeas brancas e partiu.

© Leandro Pena. Todos os direitos reservados. All rights reserved.

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Trocou, naquele fim de madrugada/começo de dia, o habitual cavalgar pelos campos da fazenda por pegar a estrada na solidão de seu Land Rover. Quinze anos desde que seus sonhos foram interrompidos e seus planos destroçados. Quinze anos e ainda não havia superado aquela dor tão grande de perder a pessoa amada. Qualquer lugar a que fosse, qualquer lugar em que estivesse – era tão difícil lidar com a dor de tê-lo perdido. Ainda era difícil sorrir, ainda era difícil viver. Sobrevivia. Por que tinha a doença de se interpor a eles? Por que a vida dele fora arrebatada tão repentinamente, inesperadamente e inevitavelmente? Por que antes mesmo de que houvessem realizado seu maior sonho.

Respirou fundo. Não queria chorar, não queria a visão turvada pelo pranto enquanto seguia seu rumo. Mas conforme se afastava do campo e de sua duradoura reclusão e mais se aproximava daquela triste cidade que abandonara diante a tragédia, mais vivas e dilacerantes tornavam-se as memórias. Ele fora seu único amor e sequer teve chance de vivê-lo plenamente. O telefonema, o hospital, a notícia fatídica, os dias intermináveis, a perda de consciência, o prenúncio do inevitável fim, a morte. O pranto inconsolável, o isolamento, a fuga, a loucura, a reclusão definitiva. Tornara-se outra pessoa. Tinha um amor que seria para toda a vida, mas a vida dele foi tão curta, tão limitada para os sonhos que tinham… Não havia volta, ela sabia muito bem, também havia morrido um pouco naquele dezoito de outubro quinze anos antes; seus sonhos morreram, sua juventude, a mulher que ela era. Sua vida ficou estéril, sem sentido, sem rumo; foi privada das alegrias dos anos seguintes, de sentir a vida crescer dentro dela, de ver filhos crescerem, o envelhecer juntos. Não desistira de viver, mas apenas sobrevivia e nada havia que pudesse despertar outra vez a garota que ela um dia foi. Nem seus anseios, nem seus prazeres, nem suas cores…. Estava resignada.

Resignada, mas ainda sentia tanto… Sentia falta dos sorrisos, das palavras gentis, dos carinhos, dos planos, das discussões bem-humoradas e mesmo das raras acaloradas; sentia falta daquilo que nem mesmo tivera a oportunidade de viver. E quanto mais se aproximava da cidade que quinze anos antes deixara para trás, mais fortemente doía. Os prédios de muitos andares, as luzes, o fluxo intenso de pessoas, os carros, os ruídos, o ar pessado, o brilho, as lojas. Tudo o que amava, tudo de que abdicara com tal de não sofrer. Detestava o campo, detestava os animais da fazenda, abominava o isolamento, não se sentia bem em silêncio. Tudo isso mudou. A fazenda era seu refúgio; o silêncio, seu aliado; os cavalos, seus melhores amigos. Ainda extremamente bela e feminina, ainda sempre de saias, ainda sempre de saltos, ainda com um longo e reluzente cabelo loiro; mas já não maquiada, jamais colorida, nunca de cabelo solto, sempre muito coberta. Não queria atrair olhares, não queria que a percebessem, não queria voltar a amar, não queria que a amassem. Seguiu pela estrada; ela e seu pranto, ela e suas lembranças, ela e sua dor, ela e seu amor. Eterno, inabalável, impossível. Pois todo dezoito de outubro reabria as feridas em seu coração, pois todo dezoito de outubro sentia saudades daquilo que jamais viveria. Poderia ser mais fácil? Não, não para ela.

Thaís Gualberto

Este texto é uma releitura de uma passagem de um dos romances que escrevo, “Fantasmas de Amor”. E este post faz parte da postagem coletiva do Vai um Café? Existe Amor na Blogosfera SIM, com tema “Um Sobrenome Chamado Saudade”.

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